COMENTÁRIO CRÍTICO SOBRE O TEXTO: "A TV COMO PRÁTICA NARRATIVA DE NOSSO TEMPO" de Rosa Maria Bueno Fischer.
Por Rafaela Melo
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Bolsista de Iniciação Científica - PIBIC/UFRGS
CITAÇÃO 1: “Quando assistimos a programas alternativos, de emissoras locais ou de tevês educativas e culturais, podemos constatar a real possibilidade de novas linguagens, a abertura de espaços a vozes diversas, além de outros usos de tempo, em telejornais, documentários, reportagens e também programa de ficção; ao mesmo tempo, constatamos a força das grandes emissoras e seus modos de narrar a vida brasileira (e de outros pontos do planeta), no sentido de também padronizar a própria maneira de fazer televisão.”
CITAÇÃO 2: “Precisamos criar mecanismos, na sociedade civil para exigir uma TV melhor, mais criativa, mais respeitosa conosco, com as maiorias e as minorias deste país. Exigir qualidade (e pensar sobre o que nos é mostrado) não é exigir censura, é lutar por direito legítimo.”
De um modo geral, as duas citações tocaram-me por falarem de possibilidades e crítica ao modelo vigente. Possibilidades de lutar por uma TV de qualidade sendo esta acessível a maioria da população e que ao pensar e refletir sobre as razões pelas quais fazem dessa ideia um tanto ambiciosa e aparentemente utópica, surgem as críticas ao modelo hegemônico de se fazer e produzir TV não só no Brasil, mas no mundo globalizado.
Inicio o comentário, afirmando que já existem redes de TV de qualidade, não apenas programas alternativos mas espaços bem diferenciados do que estamos tão habituados encontrar quando apertamos o botão power do controle remoto. A lista é imensa: Documentários e Filmes (locais, nacionais, de outros países, caseiros, bem produzidos, em curta, média ou longa-metragem) de todos os gêneros possíveis, jornalismo e debates com a participação popular, desenhos animados educativos, programas sobre direito, inclusão, saúde, cidadania, arte, cultura, música, meio ambiente, segurança pública, relações exteriores, economia, educação e muitos outros. Apresento-lhes uma boa notícia, tudo isso e muito mais tem estado há muitos anos disponível em canais de televisão públicos e abertos, canais estes de TV financiados com dinheiro público.
É comum se ouvir quando se afirma que existe canais de TV de qualidade argumentos como: “o púbico em geral não valoriza esse tipo de TV”, “o público só gosta de lixo”, “O público não quer TV de qualidade, quer banalidades” e outros argumentos de cunho elitistas como já muito bem destacado por BUCCI (1997; 2004), argumentos que em geral defendem a culpabilidade e o “mau gosto” das massas pela falta de qualidade dos programas nas grandes emissoras de televisão.
Peço-lhes licença para seguir por um outro viés: o do gosto. Viés muito bem discutido nos estudos encontrados sobre Arte e Estética, com brilhantes contribuições de teóricos que vão dos Gregos, David Hume e Immanuel Kant, Walter Benjamin (e sua turma) e outros mais contemporâneos. Não irei me basear em nenhum desses teóricos. Mas sim, em um dos nossos encontros em sala de aula, em que perguntei à professora Rosa sobre como o gosto se construía. Uma das respostas que surgiram no debate foi a de que o “a construção do gosto também se dá pelo acesso” e essa resposta me inquietou de tal ponto que me fez pensar sobre as condições existentes em nosso país sobre o acesso a essa tão sonhada TV de qualidade.
Percebi então uma problemática: Temos TV de qualidade e gratuita disponível no Brasil? Sim, temos. A maioria da população Brasileira tem acesso a todo conteúdo elaborado e financiado com o próprio dinheiro público? Não, não têm. Parece absurdo e alguém logo me refutará dizendo que, existem em média mais de 55 canais de TV públicos, sim e que toda a população tem acesso.
Quero deixar claro a diferença entre uma TV pública e uma Concessão Pública para a minha argumentação ficar mais clara: Uma Concessão Pública é meramente uma faixa do espectro eletromagnético de 6 MHz (canal), que dá direito a uma instituição o direito de transmitir sinais de televisão, em potência pré-determinada no momento da concessão, enquanto uma TV Pública possui toda sua programação, produção, equipamentos de transmissão e funcionários financiados com dinheiro público.
Falarei utilizando alguns termos técnicos sobre como o acesso a TV aberta tem se dado no Brasil nos dias atuais. A dita TV Aberta é transmitida em duas faixas: VHF1 e UHF2, divididas em 82 canais. Dependendo da concessão, a potência pode variar de 25w até centenas de kilowatts, o que determina a sua abrangência, que pode variar de 1km até centenas de quilômetros. Por outro lado, há os equipamentos receptores, que podem ser televisores, telas, celulares ou certos tipos de placas para computador, equipamentos estes, que hoje são baratos e estão acessíveis ao público nas mais diversas lojas. A população ao ouvir o termo TV aberta, o associa quase que imediatamente aos canais disponíveis nos aparelhos de TV simples, porém, a TV aberta também encontra-se em outras formas praticamente inacessíveis.
Ao observar a lista de canais públicos e abertos existentes no Brasil, nota-se que a maior parte dos canais são transmitidos para todo o país via satélite, e uma minoria possui retransmissoras locais de baixa potência, em algumas capitais, é o caso de TVs educativas ou legislativas, e ainda assim a potência de transmissão das mesmas costuma ser baixa, o que reduz a abrangência a poucas cidades.
“A TV Senado pode ser captada em todo o território nacional por antenas parabólicas dos tipos analógico e digital. Veja como sintonizar: Antena Parabólica - Sistema Analógico: Satélite – C2; Transponder - 11 A2 Polarização: Horizontal; Frequência - 4.130 MHz Antena Parabólica - Sistema Digital: Satélite - C2 ; Transponder - 1 BE, Polarização: Vertical; Frequência - 3.644,4 MHz ou 1.505,75 MHz;Antena - 3,6 m; PID - Vídeo: 1110 / Áudio: 1211 / PCR: 1110; Receptor de Vídeo/Áudio Digital NTSC MPEG-2 DVB; Symbol Rate – 3,2143Ms/s; FEC – ¾”. Texto extraído de WWW.SENADO.GOV.BR em 14 de abril de 2012.
Segundo o texto acima, a TV Senado pode ser captada em todo o território nacional, mas fica a questão: quem pode colocar uma antena de 3,6m de diâmetro em cima do telhado e comprar um receptor digital de satélite? A TV Senado está no satélite C2 em banda L, junto com a TV Escola, mas se olharmos outros canais, como a TV Assembleia de Porto Alegre, está no satélite C3 em banda C, o que demanda outra antena e outro equipamento, e obviamente muito mais dinheiro, o que faz destes canais algo inacessível ao grande público.
Sendo assim, constata-se que o acesso a canais públicos e de qualidade tem sido negado a própria população que financia esses canais e por outro lado permite-se o monopólio das grandes emissoras privadas o que fere gravemente a Constituição Federal de 1988 (art. 220, parágrafo 5°: “Os meios de comunicações não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio).” como também criticado por BUCCI (1997), na prática fica apenas no papel e no desconhecimento da população.
Portanto, lutar por democratização nas comunicações e por uma TV de qualidade, não é apenas exigir programas de qualidade em emissoras privadas, mas é principalmente lutar por melhores condições de acesso e abertura para participação da maioria da população em redes públicas e outras já existentes, lutar por politicas de financiamento e de democratização da liberação de concessões, para que a TV, esse meio de comunicação - o mais utilizado em nosso país-, construa novas formas de resistência à padronização e a homogenização, valorizando e afirmando as diferenças e construindo-se diferentes narrativas e por fim, uma TV diferente e ao mesmo tempo mais igualitária.
REFERÊNCIAS
BUCCI, Eugênio. Por que falar de televisão? Prefácio. In:__.Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo, 1997, p. 11-38.
BUCCI, Eugênio. A crítica da televisão. In: __KEHL, Maria Rita; BUCCI, Eugênio. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 27-42.
CANAIS PÚBLICOS DE TV: em http://pt.wikipedia.org/wiki/Categoria:Canais_de_televis%C3%A3o_p%C3%BAblicos_do_Brasil Acesso em 14 de abril de 2012.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV. Educação e Pesquisa. [online]. 2002, vol. 25, no.1, p. 151-162. Texto disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022002000100011. Acesso em 18 de março de 2012.
FUNDAÇÃO CULTURAL PIRATINI – TVE – Programação Semanal: em http://www.tve.com.br/?model=conteudo&menu=163 Acesso em 14 de abril de 2012.
TV CÂMARA – Programação Semanal: em http://www.camara.gov.br/internet/tvcamara/?lnk=PROGRAMACAO-DIARIA-TV-CAMARA&selecao=PROGRAMACAO Acesso em 14 de abril de 2012.
TV ESCOLA: em http://pt.wikipedia.org/wiki/TV_Escola Acesso em: 14 de abril de 2012.
TV SENADO (como sintonizar):em http://www.senado.gov.br/noticias/tv/pagina.asp?cod_pagina=4 Aceso em: 14 de abril de 2012.
1Very High Frequency: Faixa entre 30 e 300 MHz
2Ultra high Frequency: Faixa entre 300 e 3000 MHz
Por Rafaela Melo
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Bolsista de Iniciação Científica - PIBIC/UFRGS
CITAÇÃO 1: “Quando assistimos a programas alternativos, de emissoras locais ou de tevês educativas e culturais, podemos constatar a real possibilidade de novas linguagens, a abertura de espaços a vozes diversas, além de outros usos de tempo, em telejornais, documentários, reportagens e também programa de ficção; ao mesmo tempo, constatamos a força das grandes emissoras e seus modos de narrar a vida brasileira (e de outros pontos do planeta), no sentido de também padronizar a própria maneira de fazer televisão.”
CITAÇÃO 2: “Precisamos criar mecanismos, na sociedade civil para exigir uma TV melhor, mais criativa, mais respeitosa conosco, com as maiorias e as minorias deste país. Exigir qualidade (e pensar sobre o que nos é mostrado) não é exigir censura, é lutar por direito legítimo.”
De um modo geral, as duas citações tocaram-me por falarem de possibilidades e crítica ao modelo vigente. Possibilidades de lutar por uma TV de qualidade sendo esta acessível a maioria da população e que ao pensar e refletir sobre as razões pelas quais fazem dessa ideia um tanto ambiciosa e aparentemente utópica, surgem as críticas ao modelo hegemônico de se fazer e produzir TV não só no Brasil, mas no mundo globalizado.
Inicio o comentário, afirmando que já existem redes de TV de qualidade, não apenas programas alternativos mas espaços bem diferenciados do que estamos tão habituados encontrar quando apertamos o botão power do controle remoto. A lista é imensa: Documentários e Filmes (locais, nacionais, de outros países, caseiros, bem produzidos, em curta, média ou longa-metragem) de todos os gêneros possíveis, jornalismo e debates com a participação popular, desenhos animados educativos, programas sobre direito, inclusão, saúde, cidadania, arte, cultura, música, meio ambiente, segurança pública, relações exteriores, economia, educação e muitos outros. Apresento-lhes uma boa notícia, tudo isso e muito mais tem estado há muitos anos disponível em canais de televisão públicos e abertos, canais estes de TV financiados com dinheiro público.
É comum se ouvir quando se afirma que existe canais de TV de qualidade argumentos como: “o púbico em geral não valoriza esse tipo de TV”, “o público só gosta de lixo”, “O público não quer TV de qualidade, quer banalidades” e outros argumentos de cunho elitistas como já muito bem destacado por BUCCI (1997; 2004), argumentos que em geral defendem a culpabilidade e o “mau gosto” das massas pela falta de qualidade dos programas nas grandes emissoras de televisão.
Peço-lhes licença para seguir por um outro viés: o do gosto. Viés muito bem discutido nos estudos encontrados sobre Arte e Estética, com brilhantes contribuições de teóricos que vão dos Gregos, David Hume e Immanuel Kant, Walter Benjamin (e sua turma) e outros mais contemporâneos. Não irei me basear em nenhum desses teóricos. Mas sim, em um dos nossos encontros em sala de aula, em que perguntei à professora Rosa sobre como o gosto se construía. Uma das respostas que surgiram no debate foi a de que o “a construção do gosto também se dá pelo acesso” e essa resposta me inquietou de tal ponto que me fez pensar sobre as condições existentes em nosso país sobre o acesso a essa tão sonhada TV de qualidade.
Percebi então uma problemática: Temos TV de qualidade e gratuita disponível no Brasil? Sim, temos. A maioria da população Brasileira tem acesso a todo conteúdo elaborado e financiado com o próprio dinheiro público? Não, não têm. Parece absurdo e alguém logo me refutará dizendo que, existem em média mais de 55 canais de TV públicos, sim e que toda a população tem acesso.
Quero deixar claro a diferença entre uma TV pública e uma Concessão Pública para a minha argumentação ficar mais clara: Uma Concessão Pública é meramente uma faixa do espectro eletromagnético de 6 MHz (canal), que dá direito a uma instituição o direito de transmitir sinais de televisão, em potência pré-determinada no momento da concessão, enquanto uma TV Pública possui toda sua programação, produção, equipamentos de transmissão e funcionários financiados com dinheiro público.
Falarei utilizando alguns termos técnicos sobre como o acesso a TV aberta tem se dado no Brasil nos dias atuais. A dita TV Aberta é transmitida em duas faixas: VHF1 e UHF2, divididas em 82 canais. Dependendo da concessão, a potência pode variar de 25w até centenas de kilowatts, o que determina a sua abrangência, que pode variar de 1km até centenas de quilômetros. Por outro lado, há os equipamentos receptores, que podem ser televisores, telas, celulares ou certos tipos de placas para computador, equipamentos estes, que hoje são baratos e estão acessíveis ao público nas mais diversas lojas. A população ao ouvir o termo TV aberta, o associa quase que imediatamente aos canais disponíveis nos aparelhos de TV simples, porém, a TV aberta também encontra-se em outras formas praticamente inacessíveis.
Ao observar a lista de canais públicos e abertos existentes no Brasil, nota-se que a maior parte dos canais são transmitidos para todo o país via satélite, e uma minoria possui retransmissoras locais de baixa potência, em algumas capitais, é o caso de TVs educativas ou legislativas, e ainda assim a potência de transmissão das mesmas costuma ser baixa, o que reduz a abrangência a poucas cidades.
“A TV Senado pode ser captada em todo o território nacional por antenas parabólicas dos tipos analógico e digital. Veja como sintonizar: Antena Parabólica - Sistema Analógico: Satélite – C2; Transponder - 11 A2 Polarização: Horizontal; Frequência - 4.130 MHz Antena Parabólica - Sistema Digital: Satélite - C2 ; Transponder - 1 BE, Polarização: Vertical; Frequência - 3.644,4 MHz ou 1.505,75 MHz;Antena - 3,6 m; PID - Vídeo: 1110 / Áudio: 1211 / PCR: 1110; Receptor de Vídeo/Áudio Digital NTSC MPEG-2 DVB; Symbol Rate – 3,2143Ms/s; FEC – ¾”. Texto extraído de WWW.SENADO.GOV.BR em 14 de abril de 2012.
Segundo o texto acima, a TV Senado pode ser captada em todo o território nacional, mas fica a questão: quem pode colocar uma antena de 3,6m de diâmetro em cima do telhado e comprar um receptor digital de satélite? A TV Senado está no satélite C2 em banda L, junto com a TV Escola, mas se olharmos outros canais, como a TV Assembleia de Porto Alegre, está no satélite C3 em banda C, o que demanda outra antena e outro equipamento, e obviamente muito mais dinheiro, o que faz destes canais algo inacessível ao grande público.
Sendo assim, constata-se que o acesso a canais públicos e de qualidade tem sido negado a própria população que financia esses canais e por outro lado permite-se o monopólio das grandes emissoras privadas o que fere gravemente a Constituição Federal de 1988 (art. 220, parágrafo 5°: “Os meios de comunicações não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio).” como também criticado por BUCCI (1997), na prática fica apenas no papel e no desconhecimento da população.
Portanto, lutar por democratização nas comunicações e por uma TV de qualidade, não é apenas exigir programas de qualidade em emissoras privadas, mas é principalmente lutar por melhores condições de acesso e abertura para participação da maioria da população em redes públicas e outras já existentes, lutar por politicas de financiamento e de democratização da liberação de concessões, para que a TV, esse meio de comunicação - o mais utilizado em nosso país-, construa novas formas de resistência à padronização e a homogenização, valorizando e afirmando as diferenças e construindo-se diferentes narrativas e por fim, uma TV diferente e ao mesmo tempo mais igualitária.
REFERÊNCIAS
BUCCI, Eugênio. Por que falar de televisão? Prefácio. In:__.Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo, 1997, p. 11-38.
BUCCI, Eugênio. A crítica da televisão. In: __KEHL, Maria Rita; BUCCI, Eugênio. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 27-42.
CANAIS PÚBLICOS DE TV: em http://pt.wikipedia.org/wiki/Categoria:Canais_de_televis%C3%A3o_p%C3%BAblicos_do_Brasil Acesso em 14 de abril de 2012.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV. Educação e Pesquisa. [online]. 2002, vol. 25, no.1, p. 151-162. Texto disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022002000100011. Acesso em 18 de março de 2012.
FUNDAÇÃO CULTURAL PIRATINI – TVE – Programação Semanal: em http://www.tve.com.br/?model=conteudo&menu=163 Acesso em 14 de abril de 2012.
TV CÂMARA – Programação Semanal: em http://www.camara.gov.br/internet/tvcamara/?lnk=PROGRAMACAO-DIARIA-TV-CAMARA&selecao=PROGRAMACAO Acesso em 14 de abril de 2012.
TV ESCOLA: em http://pt.wikipedia.org/wiki/TV_Escola Acesso em: 14 de abril de 2012.
TV SENADO (como sintonizar):em http://www.senado.gov.br/noticias/tv/pagina.asp?cod_pagina=4 Aceso em: 14 de abril de 2012.
1Very High Frequency: Faixa entre 30 e 300 MHz
2Ultra high Frequency: Faixa entre 300 e 3000 MHz
“Sou negra e também sou mãe. Porque não sou representada nos anúncios?” ANÁLISE SOBRE A AUSÊNCIA DE NEGRAS EM UMA CAMPANHA PUBLICITÁRIA DO DIA DAS MÃES.
Por Rafaela Melo
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Bolsista de Iniciação Científica - PIBIC/UFRGS
“Não é que o negro não seja visto, mas
sim que ele é visto como não existente."
Ilka Boaventura Leite
O conceito de invisibilidade social, segundo a enciclopédia digital, "tem sido aplicado, em geral, quando se refere a grupos socialmente invisíveis, seja pelo preconceito, seja pela indiferença.” Venho discutir a invisibilidade e silenciamento, a partir de questionamentos sobre a negação da identidade negra nos espaços simbólicos midiáticos, em especial, o da publicidade. O Silenciamento sobre a existência de diferentes grupos étnico-raciais, entre os quais se encontram os afro-descendentes, perpetuam a predominância de uma determinada representação cultural, social e estética em que se prevalece um ideal de branqueamento, como a única existente. Modo de representação social contribuindo assim, para a manutenção da exclusão social desse contingente significativo da população brasileira.
A escolha desse tema para análise surgiu-me durante a ida a um tradicional supermercado do meu bairro, o Grupo Zaffari, criado em 1935, pelo casal de imigrantes italianos, Francisco José Zaffari e Santina de Carli Zaffari. O que hoje é uma grande rede de supermercados, naquela época era um pequeno armazém de secos e molhados, localizado em frente da residência do casal em Erechim-RS. A Companhia se destaca pela qualidade, variedade e preço dos produtos além do excelente atendimento. Outro ponto marcante na companhia, e o que mais nos interessa nesse estudo, é o pesado investimento em publicidade e propaganda para a divulgação do slogan, ou seja, do ponto forte da companhia e os anúncios dos seus produtos.
Ao entrar no supermercado, peguei, como de hábito, um catálogo para conferir as promoções da semana. A peça era um anúncio especial do Dia das Mães, conhecido na publicidade como Anúncio de Oportunidade (Figueredo, 2005), que é utilizado pelas empresas e para “marcar a presença institucional e mostrar ao consumidor que determinada empresa preza os homenageados daquela data”. Figueiredo (2005, p.84). Técnicas utilizadas que parecem ter sido convencionadas para a grande parte dos anúncios para o Dia das Mães veiculados por diferentes mídias. Estas, são repletas de mensagens com forte apelo emocional, com o objetivo de persuadir os consumidores utilizando temas como amor, afeição, harmonia, alegria, lembranças, compaixão, entre outros, ressaltando o senso de beleza e estética, aspectos do ego e dos sentimentos. (Stoffel, 2009).
A partir dos estudos de Thompson (1995), destaco que em nossa sociedade a mídia ocupa um papel central na definição de pautas e de conteúdos do discurso público. Para este autor, as formas simbólicas, integram a realidade social de forma a criar e manter relações de dominação, desigualdade e exclusão. Os discursos midiáticos podem ser compreendidos como forma de difusão de significados que exercem papel, ao todo ou em parte, não somente para a difusão e reprodução, mas também para a manutenção de múltiplas formas de racismo e exclusão.
Ao folhear as páginas do anúncio em homenagem às “mãos que curam, vozes que acalmam, abraços que protegem, olhos que abençoam, que são únicas e insubstituíveis. [...] Iguais no milagre de serem únicas”, chamou-me a atenção, como nunca antes, a ausência total de mães e filhas negras em todas as páginas do catálogo e em outros anúncios da Companhia Zaffari veiculado na TV e internet. A representação das mães presentes no catálogo da rede supermercados, ao exaltar um ideal de branqueamento social, nega a existência de outras formas de representação das identidades.
Curiosamente, a forma que como a companhia enaltece modelos de mães e filhas brancas em sua homenagem, não reflete as múltiplas identidades étnico-raciais dos consumidores e nem mesmo, dos próprios funcionários da Companhia Zaffari. Percebe-se assim, o quão violenta e presente se faz a discriminação étnico-racial nos produtos midiáticos e como esses contribuem para a legitimação de determinados grupos sociais.
O filósofo norte-americano Douglas Kellner, em seu livro A cultura da Mídia, nos afirma que a cultura midiática “é um terreno de disputa no qual grupos sociais importantes e ideologias rivais lutam pelo domínio, e que os indivíduos vivenciam essas lutas por meio de imagens, discursos, mitos e espetáculos veiculados pela mídia”. No Brasil, essas lutas tem sido travadas com grande força pelos movimentos e coletivos em busca de igualdade racial, que denunciam dentre tantas coisas, a ausência do negro ou quando se dá visibilidade, esta se apresenta através de imagens e discursos que reproduzem e reforçam estereótipos negativos naturalizados em nossas relações sociais.
E sobre está ausência, que também constatei em meu cotidiano, tem sido questionada e debatida em vários estudos acadêmicos. Para Martins (2007), além dos debates se preocuparem com os discursos sociais produzidos pelos modos de representação das diferenças na mídia, devemos também dar uma certa atenção para aquilo que é não é dito (o não dito) como um elemento importante como um produtor de sentido. O autor argumenta que a linguagem (verbal ou não-verbal) fixa o sentido de um determinado discurso em uma gama de sentidos possíveis e apagando outros sentidos indesejáveis. Portanto, esse não-dizer para o autor não significaria fazer calar, mas dizer uma determinada coisa, para que outras não sejam ditas.
Ao silenciar outros modos de representar a figura da mãe, as múltiplas identidades são arbitrariamente negadas. Ao negar a possibilidade de representação da mãe e filhos negros, que também são consumidores e clientes, negam-se suas identidades criando um modelo deturpado que atua negativamente em suas consciências – o de não poderem estar ali, de não serem aceitos, de não terem prestigio o suficiente para serem representados em um catálogo. Como argumenta Martins (2007), essa “autodiscriminação”, apresenta-se com uma das formas mais violentas de racismo, sendo esta, difícil de ser racionalizada e combatida, mas faz-se necessário sempre que possível, serem denunciadas.
Considero de suma importância ressaltar que tais formas de discriminações, não estão relacionadas exclusivamente aos dispositivos pedagógicos midiáticos (FISCHER, 2002), expressão que a autora designa como os “modos pelos quais a mídia opera na constituição de sujeitos e subjetividades, na medida em que produz imagens, significações e saberes que de alguma forma se dirigem à "educação" das pessoas, ensinando-lhes modos de ser e estar na cultura em que vivem.” (2002, p. 153). A invisibilidade étnico-racial também está atrelada a uma série de questões históricas, políticas, sociais e econômicas. Questões estas, marcadas pelas lutas em busca de igualdade de direitos e oportunidades na estrutura social, cultural e política, lutas em torno de significação da História e Memórias e também lutas por uma visibilidade positiva e coerente.
Há pelos menos dez anos, vem se tentando estabelecer uma proposta de cotas para negros nos meios de comunicação, proposta presente hoje no Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288 de 20 de julho de 2010), fruto de uma intensa mobilização dos movimentos negros e com apoio de uma parcela da sociedade civil. O Estatuto da Igualdade Racial adota como diretriz político-jurídica a inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial, a valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional Brasileira além de garantir a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. (Brasil, 2010). O documento também visa combater a invisibilidade da população negra nos meios de comunicações, servindo de amparo legal, para se exigir que as produções midiáticas valorizem a herança cultural e a participação da população negra na história do país. (Art. 44, Cap. VI).
Entretanto, apesar dessa grande vitória, vemos tímidas mudanças no que se refere a visibilidade do negro na mídia e como tem sido essa visibilidade. Constata-se a ausência da população negra em muitos produtos culturais e em outros casos, ao dar-se visibilidade, está se apresenta de forma negativa reforçando esteriótipos e preconceitos tão enraizados em nossa sociedade. A população negra ainda tem sido representada imageticamente como subalternas e marginalizadas, em papéis de comediantes ou humoristas, exibe-se constantemente atletas e músicos que vieram de classes baixas e conseguiram alcançar à fama, como a única possibilidade de ascensão social e se dá uma hiper visibilidade aos corpos seminus de mulheres negras, representando-as como objetos sexual. Esses e tantos outros exemplos de uma visibilidade negativa e de silenciamento, só nos revelam o quão se faz necessário a superação de um modelo hegemônico de branqueamento social, político e cultural tão excludentes.
Por fim, a educação nesse contexto, se torna um instrumento poderoso para desnaturalização de práticas descriminatórias e de exclusão de grupos étnico-raciais. O “racismo à brasileira” (Guimarães, 2002) e tanta outras formas de segregação, precisam ser reveladas e combatidas não só dentro dos movimentos e coletivos, mas em todos os espaços sociais dentre esses, a escola. Pensar em diferentes formas de intervenção que valorizem as múltiplas identidades, se posicionar criticamente diante às representações negativas e excludentes dos diferente grupos nos espaços midiáticos e lutar pelo reconhecimento e afirmação desses, me parecem a princípio, serem bons caminhos a seguir.
Referências
THOMPSON, J. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.
BRASIL. Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010. Estatuto da Igualdade Racial. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm Acesso em: 14 de junho de 2012.
FIGUEIREDO, Celso. Redação publicitária: sedução pela palavra. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV. Educação e Pesquisa. [online]. 2002, vol. 25, no.1, p. 151-162. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022002000100011. Acesso em 11 de junho de 2012.
GUIMARÃES, A. S. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2002.
Invisibilidade Social. Enciclopédia Digital. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Invisibilidade#Invisibilidade_Social Acesso em: 10 de junho de 2012.
MARTINS, C. A. M. O silêncio como forma de racismo: a ausência de negros na publicidade brasileira. Trabalho apresentado no 10. Congresso de produção Científica da Universidade Metodista de São Paulo. São Paulo, 2007. Disponível em: www.interscienceplace.org/interscienceplace/article/download/15/20 Acesso em 10 de junho de 2012.
STOFFLEL, Andressa. A emoção como estratégia de persuasão: Estudo de caso Zaffari. Nova Hamburgo: Centro Universitário Freevale, 2009. 85 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Publicidade e Propaganda). Disponível em: http://ged.feevale.br/bibvirtual/Monografia/MonografiaAndressaStoffel.pdf Acesso em 11 de junho de 2012.
“PARA GANHAR NO CONCURSO, É PRECISO JOGAR AS REGRAS DO JOGO”: Análise sobre as imposições dos concursos de beleza aos corpos infantis no Reality Show "Pequenas Misses".
Por Rafaela Melo
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Bolsista de Iniciação Científica- PIBIC/UFRGS
De todas as temáticas que surgiram no programa, um tema em específico despertou meu interesse. Acompanhando atentamente as rotinas das participantes dos concursos de beleza infantis, percebi que em cada episódio, determinados discursos se colocavam ali como verdades incontestáveis: a de que os corpos infantis precisavam ser radicalmente transformados para atender às exigências dos concursos.
O que pretendo, é mostrar como tais discursos são constituídos e como eles se impõem como verdades sobre os modos como as meninas devem agir para serem perfeitas e serem vencedoras. A partir de algumas falas, retiradas de três episódios do programa “Pequenas Misses”, tento identificar como esses discursos se apoiam em determinados saberes e são sustentados por uma rede de especialistas que os legitimam, com o poder de dizer a “verdade” que servirá de suporte para as formas de regulação, disciplinamento e subjetivação do ser menina na contemporaneidade. DORNELLES (2010, p.179).
Fala 1: Depoimento da mãe da participante Allysn de 4 anos.
“Beleza ajuda muito na vida. Você é tratada de forma de diferente. Quando eu era mais jovem eu fui modelo. Um dia você tem tudo e depois você não tem nada. Para os concursos você tem que dar o máximo de si e entrar nas regras do jogo”.
Analisando as cenas que se seguem após o depoimento da mãe, “as regras do jogo” vão se revelando aos nossos olhos. Para uma criança concorrer à premiação nos concursos, ela precisa se submeter a uma série de modificações em seus corpos. O ideal de beleza que a mãe da participante fala, está atrelada a um conjunto de processos de transformações corporais que a sua filha de cinco anos será submetida. Para o concurso, a participante precisa usar dentes postiços, por estar na fase do seu desenvolvimento em que perde os dois dentes incisivos (de leite) frontais, para nascer os dentes definitivos.
Esse processo de formação dos dentes, é ignorado pela organização do concurso, que exige em termos claros um “sorriso perfeito” para conquistar os juízes. Além da imposição dos dentes postiços, a cor da pele da participante também precisa ser também modificada, afinal, segundo os discursos dos estilistas, maquiadores e esteticistas internacionais, o bronzeamento artificial propõe que se tenha a pele “da cor de verão” o ano inteiro.
As participantes desses concursos são obrigatoriamente submetidas uma técnica chamada bronzeamento à jato, que consiste em uma aplicação de um produto químico que reage na pele, surgindo assim o “tom bronzeado”. Essas e outras inovações estéticas, tornam-se “naturalizadas” por trás do discurso da possibilidade de transformar o corpo através dos avanços tecnológicos. (JÚNIOR, LADISLAU & NIQUINI, 2008 apud CHAVES, 2003). Todas essas imposições aos corpos infantis não surgiram por um mero acaso, o corpo ao longo da história, sempre foi sujeito à transformações. Mudou-se as formas, seu peso, seu funcionamento e seus ritmos. Representações de beleza, saúde, doença, juventude, virilidade e outros, se convertem, incorporam outros contornos e se produzem ao longo da história, novos corpos. (JÚNIOR, LADISLAU & NIQUINI, 2008).
Atualmente, inúmeros produtos e tecnologias para essas transformações, interpelam nossos desejos e carências e são alimentados pelo que os autores (JÚNIOR, LADISLAU & NIQUINI, 2008), definem como: “processos de retificação, realinhamento e reconformação da indústria de aparência”, em que os corpos se apresentam na condição de passarela na qual a moda desfila. Sustenta-se assim, por meio dessas pedagogias, que deve-se buscar, desde muito cedo, ser bela, mesmo que para isso seja necessário os mais torturantes sacrifícios. Tais discursos, que se afirmam ao longo do programa a partir das diversas falas e das imagens que nos interpelam, produzem efeitos de verdade sobre o que é ser bonita em nossa sociedade (DORNELLES 2010, p. 183).
Ainda segundo estudos desses autores, a valorização dada aos corpos transformados pela sociedade do consumo, nos interpelam e nos faz acreditar que o corpo é o primeiro local da identidade e que precisa estar em visibilidade. Isso fica muito claro quando ouvimos os ditos populares “a primeira impressão é a que fica” e “imagem é tudo”.
Para Goellner (2003), o culto ao corpo como hoje vivenciamos, tem seu início ao final do século XVIII e vai se intensificando a partir daí. Mais precisamente no século XIX, o corpo adquire relevância nas relações que se estabelecem entre os indivíduos. Surge então, uma moral das aparências que diferencia o que se aparenta ser, com o que de fato, se é. Analisando o artefato cultural e em especial a fala dessa mãe que sustenta o discurso sobre como a beleza, associada diretamente as transformações do corpo, vão determinar aquilo que seremos na vida (vencedores ou fracassados) e ou determinarão ou não, nossa felicidade.
Fala 2: Depoimentos da Tricia, mãe da participante SamiJo de 15 meses (1 ano e 8 meses) e em seguida trecho de um diálogo entre a mãe a treinadora da sua filha:
“Decidi colocar a SamiJo em concursos, pois era por isso que eu queria ter uma filha. [...] SamiJo faz bronzeamento, vai para o cabeleireiro e faz maquiagem para o concurso. […] Na categoria da Sammy não costumam se bronzear, geralmente ela é a única. Queremos competir com crianças mais velhas.”
Tricia: Iremos com glitz total para esse concurso. Estamos pensando em unhas postiças.
(surge a imagem da criança com unhas postiças)
Treinadora: Ficou esquisito!
Tricia: Porque ficou esquisito?
Treinadora: Porque ela tem um ano e oito meses e está com unhas enormes que não são naturais.
As falas da mãe e o diálogo com a treinadora da participante, chocam grande maioria das pessoas que veem o programa. Afinal, trata-se de uma criança de 1 ano de 8 meses sendo submetida à processos que nem mesmo sabe o que se trata e não pode escolher se quer. Fala que atribuímos diretamente ao abuso e a violência aos corpos infantis cometidos por seus familiares. SamiJo, que ainda tenta se equilibrar com as duas pernas e aprende as primeiras palavra, já carrega sobre si tantas responsabilidades.
Contudo, desde à sua concepção, foi destinada a ser uma miss, SamiJo veio ao mundo com uma única missão: realizar o sonho que a mãe tinha de ser Miss América. Dentre os tantos sentimentos que nos surgem e que nos fazem questionar o que se está em jogo nessas falas, me questiono sobre o porquê dessas cenas nos chocar? Que concepções construímos de infância que nos leva a perplexidade diante do que é visto nas falas? Será que infância de SamiJo poderia ser diferente? Quem dá aos pais o direito de decidir o que os filhos serão desde a sua concepção?
Para tratarmos dessas questões, é necessário discorrer brevemente sobre como surgiu a ideia de infância ou de como a infância “entrou em cena”. Segundo o historiador francês Phillippe Ariès, no livro “A História Social da Criança e da Família”- (1981), a infância que aparentemente é algo que sempre existiu, é para o autor uma invenção recente. Segundo Ariès, no período chamado de Idade Média, as crianças não recebiam tratamento diferenciado dos adultos, elas viviam soltas e desde cedo aprendiam determinadas técnicas e tal como seus pais, trabalhavam.
A noção de uma infância protegida e separada do mundo dos adultos, não existia. Nos últimos cinco séculos, houve uma considerável mudança no que seria a ideia de infância. A criança passou a ser estudada, cuidada, surgiram os especialistas na infância. Segundo (DORNELES, 2005, p.21), a invenção da criança está associada a uma série de práticas no que diz respeito à vida e ao cuidado das crianças, tornando-as cada vez mais dependentes dos adultos, pois a criança sendo frágil, maleável, carecendo de razão e inocente por “natureza” semelhante a uma cera que pode ser moldada e retocada, necessita, então de direção e cuidado.
E de quem seria a responsabilidade desses cuidados e direcionamento? A invenção da infância produziu mudanças no ambiente social doméstico. A família se solidifica e precisa arcar com os cuidados, a higiene e a limpeza do espaço doméstico, bem como a sustentação moral do seus membros. (DORNELES, 2005, p. 41). É a família que toma as decisões sobre a vida da crianças, sendo elas boas ou más. Passa a ser obrigação da família suprir as necessidades primárias (alimentação, higiene e vestuário), secundárias (escolarização e lazer) e terciárias (afeto, proteção).
A partir das falas da mãe, se reforça essa noção moderna de família que deve controlar e decidir os rumos da vida de uma criança. Sob o argumento de ter o poder para governar e de decidir pela criança, já que está é heterônoma, a pequena SamiJo, é submetida a toda série de abusos e imposições ao seu corpo recém formado, sem poder se defender, sem ter como buscar socorro, pois tais transformações corporais são vistas como “naturais” e não prejudiciais. Outras crianças, diferente de SamiJo que ainda não pode dizer claramente o que pensa ou se manifeste mais enfaticamente, se expressa com gritos e lágrimas que são justificadas pela família “como birra de bebê”, nítidas expressões contra o governo dos corpos (FOUCAULT, 1984a;1984b) e tentam contestar e escapar das imposições a que são submetidas. Vejamos as falas que seguem:
Fala 3: Diálogo entre Lori (mãe) e Alaska de 8 anos, participante do concurso:
Lori: Não saí filha, parece uma máscara.
Alaska: Eu não quero! Eu não quero que meus olhos fiquem assim.
Lori (depoimento em outro cenário): Eu estava esperando que eu realmente conseguisse fazer com que a Alaska deixasse pintar os cílios, porque os dela são muito claros. […] E desse jeito não temos que nos preocupar com ela ficar chateada ao entrar no palco.
Retorna a cena do diálogo:
Lori: A decisão é sua!
Alaska: Está bom! Então eu digo não.
Alaska (depoimento em outro cenário): Eu não quero pintar os meus cílios, fiquei com medo que machuquem os meus olhos.
(No meio da cena, o pai entra na diálogo entre mãe e filha e diz que a Alaska vai pintar os cílios para encerrar aquela discussão).
Alaska (dando depoimento em lugar isolado): Eu deixei pintar meus cílios, porque todo mundo queria muito mesmo. Agora que estão tingidos já não estou gostando. Esses não parecem os meus cílios, bom, porque não são meus mesmo.
Considero essa última fala, a mais marcante para mim, pelos jogos discursivos e a violência que as falas (juntamente com a cena) nos interpelam. Em uma primeira análise, retoma-se as críticas sobre a violência e os abusos que se impõem sobre o corpo infantil, emergem os questionamentos sobre onde estariam as instâncias jurídicas e estatais para amparar essa criança vítima de tantos abusos?
Segundo a Declaração dos Direitos da Criança (1959), no artigo 2: “Todas as crianças devem ser protegidas pela família, pela sociedade e pelo Estado, para que possam se desenvolver fisicamente e intelectualmente”, direito esse, que tem sido negado, quando presenciamos uma brutal imposição de processos de modificações corporais, os quais são socialmente naturalizados pela repetitiva divulgação nos espaços/artefatos culturais. Discursos de verdade, que nos interpelam a perceber o corpo não por si mesmo, mas a partir de um corpo ideal.
Analisando as falas/cenas em destaque, noto a existência da interposição de olhares (FISCHER 2008). Em que de um lado vemos os familiares reforçarem discursos de espetáculo como o “vale tudo para ficar bonita”, e surge aos nossos olhos, uma criança que se coloca abertamente contra toda a legitimação das transformação corporais, postas como necessárias e obrigatórias à participante.
Considero a participante Alaska, uma espécie de “heroína” do programa, pois, imaginem o que deve ser para uma criança de oito anos, imersa em um contexto em que os discursos de poder (o da autoridade dos pais, e o da necessidade de transformar seu corpo para a competição) preponderam, se recusar veementemente à tingir os seus cílios de uma cor diferente aos seus.
Em depoimento em um cenário isolado do grupo familiar, a participante Alaska, confessa em frente às câmeras, único lugar que parece ter interesse em ouvi-la, ter cedido à pressão dos seus pais, assumindo em seu corpo uma identidade que não lhe pertence, uma identidade fake.
A fala da menina de oito anos, tocou-me em especial pela simples razão. Pelo fato de uma criança a partir de abusos naturalizados pela lógica dos concursos de beleza, conseguir perceber como as identidades se constituem a partir do seu corpo, de como essas transformações nos distanciam de nós mesmos, reagindo com total estranhamento à imposição a qual é submetida, ao contrário de toda uma rede de experts da estética, organizadores e familiares se negam a ver esses processos.
Para Mendes (2006), em seu artigo, “O corpo em Foucault: superfície de disciplinamento e governo”, a cena de autoconfissão da participante Alaska, direcionada para as câmeras, caracteriza-se como “técnica de tornar-se objeto de conhecimento de si próprio (conhecer-se para governar-se), esta é decisiva para “optarmos” por formas mais “conscientes”, ou pelo menos mais prazerosas, de sermos subjetivados, ou mesmo de contribuir para processos de subjetivação.”
A análise dessas falas/cenas, me recordou de um trabalho de análise do Filme “Pequena Miss Sunshine” (2007), em que Fischer (2008), se propondo a ir além das críticas já tão comuns aos concursos de beleza, mostra como as narrativas que se entrelaçam para dizer algo, acabam por nos dizer um pouco mais. Enxergar mais sobre essas infâncias que “não podem ser integradas, nem identificadas, nem compreendidas, nem previstas”, ou que podem ser nomeadas como “interrupção, novidade, catástrofe, surpresa, começo, nascimento, milagre, revolução, criação, liberdade”. (LAROSSA, 2001, p. 282).
A participante Alaska é um exemplo das infâncias que tentam escapar, que fogem do controle dos pais, do controle dos corpos, de determinados modos de constituição de identidades. Apenas, cede às pressões dos familiares, por se ver, naquela situação sem outras alternativas. Escapa, por compreender que o seu o corpo e sua identidade não podem ser impostos, escapa por resistir à discursos tão convincentes dos modos de subjetivação, escapa por reagir com estranheza ao naturalizado e por se recusar a “ser apenas a passarela pela qual a padronização deve passar”.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. Historia social da família e da infância. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
CORAZZA, Sandra. Infância & Educação. Era uma vez... quer que conte outra vez? Petrópolis: Vozes, 2002.
DORNELLES, Leni Vieira. Infâncias que nos escapam: da criança na rua à criança cyber. Petrópolis: Vozes, 2005.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Pequena Miss Sunshine: para além de uma subjetividade exterior. Pro-Posições (UNICAMP) , v. 19, p. 47-57, 2008. Disponível em: http://www.ufrgs.br/nemes/download.html. Acesso em: 27 de maio de 2012.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1984a.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade Vol. I: A vontade de saber. 5a. Edição Rio de Janeiro: Graal, 1984b
GOELLNER, Silvana Vilodre. A produção Cultural do Corpo. In: LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane Felipe, GOELLNER, Silvana Vilodre (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: Um debate contemporâneo na educação. Petrópolis, RJ, 2003, cap. 2.
JÚNIOR, José Aelson S.; LADISLAU, Carlos Rogério; NIQUINI, Cláudia Mara. A moda na carne viva: Imagem, Corpo e Consumo: aproximações teóricas. In: Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, 15; 2007, Olinda – PE. Disponível em: http://www.cbce.org.br/cd/lista_area_03.htm Acesso em 15 de maio de 2012.
LARROSA, Jorge. Dar a palavra. Notas para uma lógica da transmissão. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 281-295.
O que pretendo, é mostrar como tais discursos são constituídos e como eles se impõem como verdades sobre os modos como as meninas devem agir para serem perfeitas e serem vencedoras. A partir de algumas falas, retiradas de três episódios do programa “Pequenas Misses”, tento identificar como esses discursos se apoiam em determinados saberes e são sustentados por uma rede de especialistas que os legitimam, com o poder de dizer a “verdade” que servirá de suporte para as formas de regulação, disciplinamento e subjetivação do ser menina na contemporaneidade. DORNELLES (2010, p.179).
Fala 1: Depoimento da mãe da participante Allysn de 4 anos.
“Beleza ajuda muito na vida. Você é tratada de forma de diferente. Quando eu era mais jovem eu fui modelo. Um dia você tem tudo e depois você não tem nada. Para os concursos você tem que dar o máximo de si e entrar nas regras do jogo”.
Analisando as cenas que se seguem após o depoimento da mãe, “as regras do jogo” vão se revelando aos nossos olhos. Para uma criança concorrer à premiação nos concursos, ela precisa se submeter a uma série de modificações em seus corpos. O ideal de beleza que a mãe da participante fala, está atrelada a um conjunto de processos de transformações corporais que a sua filha de cinco anos será submetida. Para o concurso, a participante precisa usar dentes postiços, por estar na fase do seu desenvolvimento em que perde os dois dentes incisivos (de leite) frontais, para nascer os dentes definitivos.
Esse processo de formação dos dentes, é ignorado pela organização do concurso, que exige em termos claros um “sorriso perfeito” para conquistar os juízes. Além da imposição dos dentes postiços, a cor da pele da participante também precisa ser também modificada, afinal, segundo os discursos dos estilistas, maquiadores e esteticistas internacionais, o bronzeamento artificial propõe que se tenha a pele “da cor de verão” o ano inteiro.
As participantes desses concursos são obrigatoriamente submetidas uma técnica chamada bronzeamento à jato, que consiste em uma aplicação de um produto químico que reage na pele, surgindo assim o “tom bronzeado”. Essas e outras inovações estéticas, tornam-se “naturalizadas” por trás do discurso da possibilidade de transformar o corpo através dos avanços tecnológicos. (JÚNIOR, LADISLAU & NIQUINI, 2008 apud CHAVES, 2003). Todas essas imposições aos corpos infantis não surgiram por um mero acaso, o corpo ao longo da história, sempre foi sujeito à transformações. Mudou-se as formas, seu peso, seu funcionamento e seus ritmos. Representações de beleza, saúde, doença, juventude, virilidade e outros, se convertem, incorporam outros contornos e se produzem ao longo da história, novos corpos. (JÚNIOR, LADISLAU & NIQUINI, 2008).
Atualmente, inúmeros produtos e tecnologias para essas transformações, interpelam nossos desejos e carências e são alimentados pelo que os autores (JÚNIOR, LADISLAU & NIQUINI, 2008), definem como: “processos de retificação, realinhamento e reconformação da indústria de aparência”, em que os corpos se apresentam na condição de passarela na qual a moda desfila. Sustenta-se assim, por meio dessas pedagogias, que deve-se buscar, desde muito cedo, ser bela, mesmo que para isso seja necessário os mais torturantes sacrifícios. Tais discursos, que se afirmam ao longo do programa a partir das diversas falas e das imagens que nos interpelam, produzem efeitos de verdade sobre o que é ser bonita em nossa sociedade (DORNELLES 2010, p. 183).
Ainda segundo estudos desses autores, a valorização dada aos corpos transformados pela sociedade do consumo, nos interpelam e nos faz acreditar que o corpo é o primeiro local da identidade e que precisa estar em visibilidade. Isso fica muito claro quando ouvimos os ditos populares “a primeira impressão é a que fica” e “imagem é tudo”.
Para Goellner (2003), o culto ao corpo como hoje vivenciamos, tem seu início ao final do século XVIII e vai se intensificando a partir daí. Mais precisamente no século XIX, o corpo adquire relevância nas relações que se estabelecem entre os indivíduos. Surge então, uma moral das aparências que diferencia o que se aparenta ser, com o que de fato, se é. Analisando o artefato cultural e em especial a fala dessa mãe que sustenta o discurso sobre como a beleza, associada diretamente as transformações do corpo, vão determinar aquilo que seremos na vida (vencedores ou fracassados) e ou determinarão ou não, nossa felicidade.
Fala 2: Depoimentos da Tricia, mãe da participante SamiJo de 15 meses (1 ano e 8 meses) e em seguida trecho de um diálogo entre a mãe a treinadora da sua filha:
“Decidi colocar a SamiJo em concursos, pois era por isso que eu queria ter uma filha. [...] SamiJo faz bronzeamento, vai para o cabeleireiro e faz maquiagem para o concurso. […] Na categoria da Sammy não costumam se bronzear, geralmente ela é a única. Queremos competir com crianças mais velhas.”
Tricia: Iremos com glitz total para esse concurso. Estamos pensando em unhas postiças.
(surge a imagem da criança com unhas postiças)
Treinadora: Ficou esquisito!
Tricia: Porque ficou esquisito?
Treinadora: Porque ela tem um ano e oito meses e está com unhas enormes que não são naturais.
As falas da mãe e o diálogo com a treinadora da participante, chocam grande maioria das pessoas que veem o programa. Afinal, trata-se de uma criança de 1 ano de 8 meses sendo submetida à processos que nem mesmo sabe o que se trata e não pode escolher se quer. Fala que atribuímos diretamente ao abuso e a violência aos corpos infantis cometidos por seus familiares. SamiJo, que ainda tenta se equilibrar com as duas pernas e aprende as primeiras palavra, já carrega sobre si tantas responsabilidades.
Contudo, desde à sua concepção, foi destinada a ser uma miss, SamiJo veio ao mundo com uma única missão: realizar o sonho que a mãe tinha de ser Miss América. Dentre os tantos sentimentos que nos surgem e que nos fazem questionar o que se está em jogo nessas falas, me questiono sobre o porquê dessas cenas nos chocar? Que concepções construímos de infância que nos leva a perplexidade diante do que é visto nas falas? Será que infância de SamiJo poderia ser diferente? Quem dá aos pais o direito de decidir o que os filhos serão desde a sua concepção?
Para tratarmos dessas questões, é necessário discorrer brevemente sobre como surgiu a ideia de infância ou de como a infância “entrou em cena”. Segundo o historiador francês Phillippe Ariès, no livro “A História Social da Criança e da Família”- (1981), a infância que aparentemente é algo que sempre existiu, é para o autor uma invenção recente. Segundo Ariès, no período chamado de Idade Média, as crianças não recebiam tratamento diferenciado dos adultos, elas viviam soltas e desde cedo aprendiam determinadas técnicas e tal como seus pais, trabalhavam.
A noção de uma infância protegida e separada do mundo dos adultos, não existia. Nos últimos cinco séculos, houve uma considerável mudança no que seria a ideia de infância. A criança passou a ser estudada, cuidada, surgiram os especialistas na infância. Segundo (DORNELES, 2005, p.21), a invenção da criança está associada a uma série de práticas no que diz respeito à vida e ao cuidado das crianças, tornando-as cada vez mais dependentes dos adultos, pois a criança sendo frágil, maleável, carecendo de razão e inocente por “natureza” semelhante a uma cera que pode ser moldada e retocada, necessita, então de direção e cuidado.
E de quem seria a responsabilidade desses cuidados e direcionamento? A invenção da infância produziu mudanças no ambiente social doméstico. A família se solidifica e precisa arcar com os cuidados, a higiene e a limpeza do espaço doméstico, bem como a sustentação moral do seus membros. (DORNELES, 2005, p. 41). É a família que toma as decisões sobre a vida da crianças, sendo elas boas ou más. Passa a ser obrigação da família suprir as necessidades primárias (alimentação, higiene e vestuário), secundárias (escolarização e lazer) e terciárias (afeto, proteção).
A partir das falas da mãe, se reforça essa noção moderna de família que deve controlar e decidir os rumos da vida de uma criança. Sob o argumento de ter o poder para governar e de decidir pela criança, já que está é heterônoma, a pequena SamiJo, é submetida a toda série de abusos e imposições ao seu corpo recém formado, sem poder se defender, sem ter como buscar socorro, pois tais transformações corporais são vistas como “naturais” e não prejudiciais. Outras crianças, diferente de SamiJo que ainda não pode dizer claramente o que pensa ou se manifeste mais enfaticamente, se expressa com gritos e lágrimas que são justificadas pela família “como birra de bebê”, nítidas expressões contra o governo dos corpos (FOUCAULT, 1984a;1984b) e tentam contestar e escapar das imposições a que são submetidas. Vejamos as falas que seguem:
Fala 3: Diálogo entre Lori (mãe) e Alaska de 8 anos, participante do concurso:
Lori: Não saí filha, parece uma máscara.
Alaska: Eu não quero! Eu não quero que meus olhos fiquem assim.
Lori (depoimento em outro cenário): Eu estava esperando que eu realmente conseguisse fazer com que a Alaska deixasse pintar os cílios, porque os dela são muito claros. […] E desse jeito não temos que nos preocupar com ela ficar chateada ao entrar no palco.
Retorna a cena do diálogo:
Lori: A decisão é sua!
Alaska: Está bom! Então eu digo não.
Alaska (depoimento em outro cenário): Eu não quero pintar os meus cílios, fiquei com medo que machuquem os meus olhos.
(No meio da cena, o pai entra na diálogo entre mãe e filha e diz que a Alaska vai pintar os cílios para encerrar aquela discussão).
Alaska (dando depoimento em lugar isolado): Eu deixei pintar meus cílios, porque todo mundo queria muito mesmo. Agora que estão tingidos já não estou gostando. Esses não parecem os meus cílios, bom, porque não são meus mesmo.
Considero essa última fala, a mais marcante para mim, pelos jogos discursivos e a violência que as falas (juntamente com a cena) nos interpelam. Em uma primeira análise, retoma-se as críticas sobre a violência e os abusos que se impõem sobre o corpo infantil, emergem os questionamentos sobre onde estariam as instâncias jurídicas e estatais para amparar essa criança vítima de tantos abusos?
Segundo a Declaração dos Direitos da Criança (1959), no artigo 2: “Todas as crianças devem ser protegidas pela família, pela sociedade e pelo Estado, para que possam se desenvolver fisicamente e intelectualmente”, direito esse, que tem sido negado, quando presenciamos uma brutal imposição de processos de modificações corporais, os quais são socialmente naturalizados pela repetitiva divulgação nos espaços/artefatos culturais. Discursos de verdade, que nos interpelam a perceber o corpo não por si mesmo, mas a partir de um corpo ideal.
Analisando as falas/cenas em destaque, noto a existência da interposição de olhares (FISCHER 2008). Em que de um lado vemos os familiares reforçarem discursos de espetáculo como o “vale tudo para ficar bonita”, e surge aos nossos olhos, uma criança que se coloca abertamente contra toda a legitimação das transformação corporais, postas como necessárias e obrigatórias à participante.
Considero a participante Alaska, uma espécie de “heroína” do programa, pois, imaginem o que deve ser para uma criança de oito anos, imersa em um contexto em que os discursos de poder (o da autoridade dos pais, e o da necessidade de transformar seu corpo para a competição) preponderam, se recusar veementemente à tingir os seus cílios de uma cor diferente aos seus.
Em depoimento em um cenário isolado do grupo familiar, a participante Alaska, confessa em frente às câmeras, único lugar que parece ter interesse em ouvi-la, ter cedido à pressão dos seus pais, assumindo em seu corpo uma identidade que não lhe pertence, uma identidade fake.
A fala da menina de oito anos, tocou-me em especial pela simples razão. Pelo fato de uma criança a partir de abusos naturalizados pela lógica dos concursos de beleza, conseguir perceber como as identidades se constituem a partir do seu corpo, de como essas transformações nos distanciam de nós mesmos, reagindo com total estranhamento à imposição a qual é submetida, ao contrário de toda uma rede de experts da estética, organizadores e familiares se negam a ver esses processos.
Para Mendes (2006), em seu artigo, “O corpo em Foucault: superfície de disciplinamento e governo”, a cena de autoconfissão da participante Alaska, direcionada para as câmeras, caracteriza-se como “técnica de tornar-se objeto de conhecimento de si próprio (conhecer-se para governar-se), esta é decisiva para “optarmos” por formas mais “conscientes”, ou pelo menos mais prazerosas, de sermos subjetivados, ou mesmo de contribuir para processos de subjetivação.”
A análise dessas falas/cenas, me recordou de um trabalho de análise do Filme “Pequena Miss Sunshine” (2007), em que Fischer (2008), se propondo a ir além das críticas já tão comuns aos concursos de beleza, mostra como as narrativas que se entrelaçam para dizer algo, acabam por nos dizer um pouco mais. Enxergar mais sobre essas infâncias que “não podem ser integradas, nem identificadas, nem compreendidas, nem previstas”, ou que podem ser nomeadas como “interrupção, novidade, catástrofe, surpresa, começo, nascimento, milagre, revolução, criação, liberdade”. (LAROSSA, 2001, p. 282).
A participante Alaska é um exemplo das infâncias que tentam escapar, que fogem do controle dos pais, do controle dos corpos, de determinados modos de constituição de identidades. Apenas, cede às pressões dos familiares, por se ver, naquela situação sem outras alternativas. Escapa, por compreender que o seu o corpo e sua identidade não podem ser impostos, escapa por resistir à discursos tão convincentes dos modos de subjetivação, escapa por reagir com estranheza ao naturalizado e por se recusar a “ser apenas a passarela pela qual a padronização deve passar”.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. Historia social da família e da infância. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
CORAZZA, Sandra. Infância & Educação. Era uma vez... quer que conte outra vez? Petrópolis: Vozes, 2002.
DORNELLES, Leni Vieira. Infâncias que nos escapam: da criança na rua à criança cyber. Petrópolis: Vozes, 2005.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Pequena Miss Sunshine: para além de uma subjetividade exterior. Pro-Posições (UNICAMP) , v. 19, p. 47-57, 2008. Disponível em: http://www.ufrgs.br/nemes/download.html. Acesso em: 27 de maio de 2012.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1984a.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade Vol. I: A vontade de saber. 5a. Edição Rio de Janeiro: Graal, 1984b
GOELLNER, Silvana Vilodre. A produção Cultural do Corpo. In: LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane Felipe, GOELLNER, Silvana Vilodre (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: Um debate contemporâneo na educação. Petrópolis, RJ, 2003, cap. 2.
JÚNIOR, José Aelson S.; LADISLAU, Carlos Rogério; NIQUINI, Cláudia Mara. A moda na carne viva: Imagem, Corpo e Consumo: aproximações teóricas. In: Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, 15; 2007, Olinda – PE. Disponível em: http://www.cbce.org.br/cd/lista_area_03.htm Acesso em 15 de maio de 2012.
LARROSA, Jorge. Dar a palavra. Notas para uma lógica da transmissão. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 281-295.